INDIFERENÇA , SINTOMAS DA CARNE
João 13-110
O apóstolo João dedicou 5
capítulos de seu Evangelho (13-17) às últimas horas que Jesus passou
acompanhado apenas dos discípulos. Era a última Páscoa, a última refeição,
as últimas horas que compartilhavam antes da dramática prisão, julgamento
e crucificação do Senhor.
O local escolhido foi o
Cenáculo, uma sala ampla situada no primeiro andar de uma residência,
previamente, escolhida pelo Senhor (Mc 14. 12-16). Em ocasiões dessa
natureza, desde os tempos mais antigos, era costume semita oferecer ao
visitante ou peregrino uma bacia com água para a lavagem dos pés antes de
achegar-se à mesa para as refeições (Gn 18.4; 19.2).
Na época
neotestamentária, se a visita fosse coletiva e o dono da casa não tivesse
condições de cumprir o protocolo, por cortesia, um componente do grupo,
voluntariamente, se apresentava para o serviço
Mas,
naquela noite, nenhum dos acompanhantes de Jesus desprendeu-se para
o gesto singelo e o artigo objetiva refletir
·
TRÊS RAZÕES
possíveis
para essa indiferença e seus desdobramentos inéditos. “Querer ser o
maior, chefe, ainda continua sendo uma poderosa tentação para muitos
cristãos”
·
PRIMEIRA RAZÃO:
O convívio dos Doze foi marcado por constantes disputas: “Começou uma discussão entre os discípulos acerca de qual deles seria o maior” (Lc 9. 46). Queriam saber quem teria a primazia no colégio apostólico; uma contenda que perpassou o período em que estiveram na companhia do Mestre.
·
SEGUNDA RAZÃO:
A polêmica cresceu, extrapolou o círculo apostólico e o âmbito terrenal. A esposa de Zebedeu (Salomé) entrou na querela e rogou a Jesus que seus filhos Tiago e João fossem os eleitos para estar à sua direita e esquerda no Reino escatológico.
A atitude
da mulher criou um mal estar generalizado, incendiando ainda mais
a disputa, porém, o Mestre descartou a concessão de privilégios especiais
no Reino vindouro: “Esses lugares pertencem àqueles para quem foram
preparados por meu Pai” (Mt. 20. 20-28).
· TERCEIRA RAZÃO:
Uma terceira razão para os discípulos não terem se importado em lavar os pés uns dos outros estaria na desvalorização da função naqueles dias, uma ação extremamente humilhante, amiúde, relegada a um servo portador de alguma deficiência física ou mental, incapaz de prestar outro tipo de serviço, como, afirma Connelly, já referenciado.
Nessa trama ardilosa, entende-se
por que nenhum deles queria “descer”, “rebaixar-se” e banhar os pés uns dos
outros.
“Nunca seremos aptos para
o serviço de Deus, se não olharmos para além desta vida passageira” (João
Calvino).
O gesto de cortesia
tornou-se vergonhoso e desprezível naqueles dias, porém, o Mestre
resgatou-o em seu ministério (Lc 7. 44), deu-lhe ressignificado,
atribuiu-lhe valor de grandeza suprema, imensurável e transcendental em
seu Reino:
1. No Reino de Deus, bem aventurados (felizes,
abençoados) são os humildes de espírito, os mansos, os famintos, os
sedentos de justiça, os que choram (penitentes), os misericordiosos (Mt
5);
2. No Reino de Deus, “Se alguém quer ser o primeiro, será o último e servo de todos” (Mc 9. 35);
3. “Aquele que se humilhar como [uma] criança, esse é o maior no Reino dos Céus”(Mt. 18.4);
4. No Reino de Deus, as coisas fracas confundem as fortes, “Deus escolheu as coisas vis deste mundo, e as desprezíveis, e as que não são para aniquilar as que são; para que nenhuma carne se glorie perante ele” (1 Co 1. 27-29). A
Entretanto, no imaginário
dos Doze, o Reino do Senhor comportaria a reprodução da estrutura social
ainda vigente em nossos dias, onde, maior é quem detém o poder político,
econômico ou mesmo religioso, tem status social, domina o semelhante.
Mesmo assim, o Mestre não
reprendeu seus pupilos, não ordenou que fizessem o procedimento esperado,
não cancelou a refeição. Ele é o “Servo do Senhor”, humilde, manso, obediente
(Is 42) e, calmamente perguntou: “Pois qual é maior: quem está à mesa ou
quem serve: Porventura, não é quem está à mesa? Pois, no meio de vós eu
sou como quem serve” (Lc 22. 27).
Conforme uma tradição
judaica, os pupilos de um rabino tinham a obrigação de prestar-lhe os
mesmos serviços de um escravo, exceto, “a lavagem de seus pés, que era
serviço por demais braçal e humilde”. Então, Jesus decidiu fazer por
seus discípulos o que nem mesmo era esperado deles em seu favor.
JESUS NOS DEU EXEMPLO
Com o gesto serviçal
Jesus rompeu mais um paradigma cultural na relação mestre-discípulo,
ressignificou o sentido de liderança para a cristandade e confidenciou
o que esperava deles dali em diante: “Vós me chamais o Mestre e Senhor e
dizeis bem, porque eu o sou. Ora se eu, sendo o Senhor e Mestre, vos lavei
os pés, também vós deveis lavar os pés uns dos outros” (Jo. 13. 13,14).
“Que Ele cresça e eu
diminua, que Ele apareça e eu me constranja com a sua Glória e todo o seu
amor, infinita humildade, servo de todos os irmãos” (Deigma
Marques).
Quebrantados, os
discípulos entenderam que Jesus não veio ao mundo para distribuir benesses
e privilégios para alguns. Após a última lição do Mestre estavam aptos
para o querigma evangélico, “A Grande Comissão” (Mt 28. 18-20).
Foram cheios do Espírito
Santo (At 2) e esvaziados da ânsia pelo poder. Entenderam que não deveriam
buscar honrarias humanas, que a glória dos súditos do Reino encontra-se,
unicamente, na cruz do Senhor Jesus Cristo (1 Ts 2. 6; Gl 6.14).
Jesus demonstrou que no
Reino de Deus não existe trabalho desonroso ou insignificante. As tarefas
que parecem mais simples, realizadas com amor, são inefáveis aos olhos do
Senhor. Uma bacia com água e uma toalha permanece para nós como padrão de
excelência no serviço aos irmãos.
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